Quando eu estava
pesquisando os brasileiros em Los Angeles, conheci Adair, um enfermeiro
adventista com quem aprendi sobre a Bíblia, medicina alternativa, comida
natural e várias outras coisas. Certa tarde eu estava em casa, olhando os
desenhos das “Cartas do Caminho Sagrado”, de Jamie Sams, guru indígena
americana, quando Adair bateu na minha porta.
Ao ver as cartas
espalhadas sobre a minha mesa de jantar e observar que se assemelhavam às
cartas de Tarot, ele me repreendeu dizendo que a Bíblia condenava aqueles que
recorriam a esses oráculos. Como já nos conhecíamos há mais de dois anos, eu
lhe perguntei se ele duvidava da minha sinceridade, do meu caráter e se
realmente achava que a curiosidade pelo mundo além do consentido pelo
cristianismo deveria ser punida nos mesmos termos de Deus contra Eva, por ela
ter ousado experimentar o fruto proibido.
Ele refletiu e disse que
não. Expliquei o sentido das cartas e daquele baralho. Não atentavam de nenhum
modo contra o Deus cristão ou os seus ensinamentos. Naquela conversa, Adair se
deu conta de que a exclusividade exigida pelas religiões é semelhante àquela
exigida pela monogamia: receiam que as descobertas produzam metamorfoses…
Dividam a atenção… Mas não é verdade que o conhecimento leva necessariamente à
perda do paraíso, à ganância, à miséria… Ao contrário, o conhecimento é o único
remédio contra a ignorância que, esta sim, como dizia o antropólogo Eric Wolf,
é irmã gêmea da desgraça, do preconceito, do ódio e da intolerância...
Aprender quase sempre
implica em se transformar… Desse modo, aprofundar o conhecimento sobre nós
mesmos e o mundo que nos rodeia representa um enorme risco… Uma viagem sem
volta, como a da própria vida. O empenho no exercício da atenção a nós e ao
“outro” cria possibilidades extraordinárias e nos permite perceber que o
“outro” não pode adivinhar o que queremos ou pensamos… Não é disto que fala
Ferreira Gullar no poema abaixo?
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Sendo todos nós um pouco
enigmáticos, precisamos nos observar e também às palavras que usamos… Domá-las,
recriá-las… Como nos relacionamos com elas? Que sentido a nossa história lhes
deu? Que outros tantos sentidos cada história individual lhes dá? Este
exercício nos tornará mais tolerantes, tanto com nós mesmos como com os outros…
Mais humildes, atenciosos e gentis… Não é um risco que vale a pena correr?
Bernadete Beserra -
Fortaleza, 15 de setembro, 19:30h.
A riqueza deste banquete de saber que ora me apresentam, foi um veículo que me conduziu a aprofundar mais e mais as minhas reflexões sobre cotidiano, expressões alheias e manifestações concretas dos meus semelhantes.
ResponderExcluirO processo do conhecer não é penoso mas sim prazeroso mas, o processo do conhecer-se esse sim pode ser penoso.
Quando nos pedem pra falar de outra pessoa é fácil, natural. Mas quando temos que falar de nós, sempre travamos um pouco...o conhecer-se é mais complicado sim.
ExcluirUm dos problemas, sem dúvida, é que nos fantasiamos demais... Aprendemos que temos de ser perfeitos e, não sendo, não sabemos o que ser, o que fazer... e construímos uma ponte de fantasia entre o nosso desejo e a nossa prática... E perdemos a oportunidade de nos auto-avaliarmos e realmente nos transformarmos no que desejamos... O medo da crítica... A ideia da crítica "construtiva", como se a vida só ensinasse quando é amorosa ou gentil... Não é principalmente o sofrimento que nos faz parar e refletir? É claro que a gentileza e a generosidade, de graça, nos surpreendem... Mas é, infelizmente, a dor que nos obriga a parar... E refletir. Como aprender sem DOR? Como aprender sem se sentir um pouco violentado?
ExcluirFato. Realmente quando penso no que me levar a refletir sobre minhas atitudes, sempre é quando algo não sai como planejado e aí me vem o sentimento de dor, de decepção. Mas por que isso acontece?
ExcluirSeu Maurício, as suas reflexões me levam a perguntar: será que a UFC está preparada para lidar e incorporar a riqueza que vocês nos trazem? Será que os planejadores dessa "nova" universidade brasileira, teoricamente mais democrática, previram quem comporia esse alunado?
ExcluirM.D. Profa. Dra. Bernadete, creio que não previram, não pensaram e certamente que não pensam em pessoas que comporiam esse alunado, essa nova universidade, que deve sim ser democrática, amplamente aberta a todos. Desculpe pela demora em participar deste debate eletrônico, rico em conhecimento, mas o tempo que eu gostaria de disponibilzar para aumentar o meu conteúdo educacional me deixa à margem da produtividade do conhecimento, principalmente quando os participantes são pessoas de visão ampla.
ExcluirAcredito que tudo depende do contexto social e cultural que estamos inseridos, porém, as mudanças tanto em nós, como nos outros, são possíveis. Há sempre o que aprender, sempre o que acrescentar. E acredito também que a busca pelo conhecimento nos dá uma melhor compreensão acerca do outro, como também, a oportunidade de fazermos uma escolha autêntica daquilo que queremos.
ResponderExcluirConcordo com vc Rose. Engraçado, ontem eu estava lendo uma tirinha do Carlos Ruas que contava a seguinte situação: imagina duas crianças que foram separadas ao nascer e cada uma foi viver em uma cultura diferente.Anos mais tarde, elas se reencontram e a visão de mundo e conceitos sobre o que é certo ou errado são totalmente 'avessos'. O que acaba criando divergências q resulta em conflitos. O que reflete bem o que é nossa sociedade hoje. As pessoas disputam entre si para defender a sua 'verdade', muitas vezes, menosprezando a cultura do outro por se considerar superior a ele. Enfim, não sei se fui clara, mas ao meu ver o que falta muitas vezes é o diálogo, a tolerância e o respeito para com as diferenças do outro.
ResponderExcluirPois é, Aline, mas não podemos esquecer as características da sociedade em que vivemos... O problema da diferença é que é utilizada para justificar a desigualdade, para oprimir, dominar... Noutras palavras: quem está interessado em diálogo? Para que o diálogo quando o propósito é a dominação, a exploração? E uma pergunta mais difícil: por que a escola faz o mesmo jogo das outras instituições sociais que se orientam por essa regra aí, geral, da desigualdade e da sua manutenção? Podemos, claro, com certo esforço, transformar o nosso encontro, a nossa sala de aula, num espaço de diálogo, num oásis... Mas será apenas isto, um oásis no meio do deserto.... Ou podemos mais?
ExcluirClaro q podemos mais! Mas o primeiro passo, mais importante, é compreender como se formam essas concepções. Não basta notarmos que há as 'desigualdades', mas depreender como elas se construíram ao longo da história, e a partir dessa visão, como o Cartunista Carlos Ruas brilhantemente critica na suas tirinhas, provocar a discussão e a reflexão acerca do assunto, para que um dia, possamos promover mudanças.
ExcluirBom dia, Aline!
ExcluirVocê vive falando desse Carlos Ruas... Compartilhe conosco uma dessas "tiras"... e aí você não fica "sabida" sózinha... rs.
É isso mesmo Aline! Entendo que nossa verdade deve ser revelada, mas, sem ferir a verdade do outro. Também acredito que o diálogo, a tolerância e sobretudo o respeito são importantíssimos diante das diferenças.
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ExcluirPor isso que devemos sim, correr este risco! Tolerância a empatia são sinônimos de conhecimento. De si e do outro. Este exercício é diário e deve ser estimulado sempre. Muitas vezes não mostra-se uma tarefa fácil...nos deparamos com muitas feridas e "verdades absolutas" sendo desfeitas...Mas quantas novas possibilidades também nos são apresentadas!...Desconhecidas, improváveis...desejáveis.
ResponderExcluirE quanto a domar as palavras...Ah! Este sim é um grande desafio!
É verdade, precisamos estar sempre em busca do conhecimento, com a mente aberta a essas novas possibilidades, deixando de lado algumas verdades impostas e procurando ver nas entrelinhas, abrindo assim, um novo leque de alternativas e percepções, buscando com sabedoria e humildade, o crescimento e a evolução espiritual.
ResponderExcluirRefleti sobre as inúmeras possibilidades que o conhecimento nos traz. Algumas são arriscadas sim, mesmo que não nos pareçam desta forma inicialmente. Rever conceitos socialmente construídos, sobre nós ou sobre os "outros", incomoda...no mínimo desestabiliza.
ResponderExcluirMesmo quando nos referimos ao outro, estamos explicitando nossa leitura de mundo, nossas concepções, nossos referenciais...(Re)ver o outro, implica termos de (re)ver nós mesmos...
Sou cristã, mas aprendi mais acerca do conhecimento e da necessidade de nos questionarmos com um amigo ateu.. saí da minha "sociedade fechada" e percebi o quanto é importante estarmos em harmonia com o que não nos é comum e descobrir coisas boas que poderão nos acrescentar em muito, investigar e conhecer ao invés de pré conceber imagens negativas é essencial, nos tornamos mais esclarecidos assim. Achei o texto maravilhoso e muito inspirador!
ResponderExcluirBuscar novos conhecimentos, experiências e oportunidades sempre traz riscos, muitas vezes, imensuráveis. Sobre a questão de valer a pena, vai depender de um contexto geral que apenas pode ser respondido diante da situação exposta, no entanto o conhecimento nos tira da alienação de aceitar os fatos de qualquer jeito e nos proporciona a oportunidade de questionarmos até onde a "verdade" está.
ResponderExcluirA diferença sempre nos causa um certo incômodo, principalmente, quando somos criados e educados para pensar de certa maneira. No entanto, esse contato com o novo nos proporciona um aprendizado mais amplo, o hábito muitos vezes não permite uma reflexão. As diferenças são importantes para percebermos que cada um tem sua propria identidade, seu proprio jeito de ser, idependente de religiao ou cultura, é necessário o respeito e a tentativa de uma compreensão do "novo", não se pode criar padroes e querer que as pessoas os sigam, o que se deve fazer é ser mais tolerante com os outros e tentar compreender suas histórias antes de julgar ou criticar.
ResponderExcluirCom certeza Dulci... Sempre é mais dificil falar de nós mesmo!
ResponderExcluirEu também concordo plenamente com vocês Aline e Rose! Para cada um de nós existe uma verdade, sempre difícil de ser entendida, mas o respeito às diferenças e a tolerância sao mais que importantes para conviver com o outro!
E dominar as palavras, esse sim é um grande desafio. Sempre temos a tendencia de dizer aquilo que acreditamos ser a verdade, mas esquecemos que os outros são diferentes, e como eu, devem ser respeitados e entendidos.
O conhecimento traz sim grandes mudanças dentro de cada um. Elas podem ser para os outros pouco perceptíveis, entretanto, para nós é como se um grande abismo fosse se fechando e as coisas passassem a fazer mais sentido...
Julia, precisamos sim enxergar o outro mas, por outro lado, não podemos deixar de nos expressar... e correr riscos! Pensar um pouco como Jacques Ranciére que vê o desentendimento como uma oportunidade de entendimento... Do contrário, adoecemos... Precisamos nos expressar inclusive para mudar, se for o caso... Tenho medo do discurso da tolerância, que tem muitas facetas... Uma delas é confundir tolerar com ignorar... Fingir apenas que se escuta o outro... Enfim, acho que tolerar é ser capaz de lidar com a diferença do outro: compreendê-la e inclusive combatê-la se for o caso. Afinal, há muitas diferenças que só produzem miséria...
ExcluirA arte de "traduzir-se" é uma tarefa bastante complicada para a maioria de nós; nossas partes nos confundem por diversas vezes e, em vários momentos, criam relações conflituosas e de difícil solução... Precisamos, a cada oportunidade, adentramos neste mundo desconhecido de nós mesmos e tentarmos entendê-lo, pois, esta é a melhor maneira de compreendermos o universo de pessoas que nos rodeiam...
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